Osteomelite Crônica

Por favor, você pode me ajudar? 

Céu azul, uma única nuvem insolente, uma leve brisa desajeitando delicadamente os cabelos. Dia perfeito para uma boa ação.

Estufei o peito, projetei a cabeça ligeiramente para o alto e com passos firmes e decididos fui ao seu encontro.

Em questão de segundos dispensei o lixeiro que vinha em sua direção e me dispus a ajudar. Caminhava lentamente com o apoio de duas muletas.

Devia ser a perna esquerda, pensei. Segurei uma de suas muletas e ofereci meus ombros.

Tenho muito medo dos carros. Muito obrigada, moça. Que Deus te abençoe.

Gelei. O tom piedoso daquelas palavras causaram-me uma súbita náusea.

Grave erro.

A distância do portão principal, onde estávamos, até a porta de entrada do shopping não passava de 300 metros. Os 300 metros mais intermináveis e entediantes de minha existência.

Ou quase isso.

Eu vim matar aquele desgraçado que tava saindo com a minha mulher. 

Imitação barata de uma típica tragédia rodrigueana em três ATOS:

Ato I: Surfista carioca corno descobre a traição da mulher.

Ato II: Surfista carioca corno decidi matar o amante.

Ato III: Surfista carioca corno é brutalmente atropelado por uma carro da polícia. Surfista carioca corno e, agora manco, não consegue concluir sua vingança.

Narrava sua história enquanto exibia a grotesca cicatriz que percorria toda extensão de sua perna esquerda. Sim, era a esquerda. A este ponto sentia raiva- dele e, sobretudo de mim.

Calculo que paramos umas quatro vezes. Na última delas, quase ao final de nossa jornada um silêncio aterrador se fez entre nós. Me encarou.

Você acha que eu devo perdoar?

Com todo cinismo que me foi possível, retruquei:

E você acha mesmo que ela quer ser perdoada?

Seus olhos se encheram de ódio. Aos poucos o ódio se transformou em uma resignação patética.

O médico disse que é os-te-o-me-li-te crô-ni-ca. Você sabe o que é isto?

Último segundo de silêncio.

Osteomelite crônica.

Pronunciou com um certo orgulho, como se a imponência do nome conferisse uma certa dignidade à sua tragédia.

Você acha que eu vou perder minha perna?